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Cian
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Cian

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Ele não disse isso de maneira maldosa ou sarcástica, era apenas uma afirmação, uma certeza que, de fato, um momento depois reconheci, colocando meu rei ao seu lado.

Cian sentou ao meu lado, observando atentamente. Ela sabia que eu não gostava de responder perguntas sobre xadrez enquanto jogava contra outra pessoa, então permaneceu em silêncio, embora eu soubesse que estava bastante entusiasmada para saber o que era um garfo e por que deveria levar ao final do jogo tão rapidamente.

O capitão tomou o meu lugar quando concedi o jogo ao homem. O capitão Sinawey durou um pouco mais que eu, mas, ainda assim, naufragou em menos de vinte minutos.

Eu me perguntava, como poderia esse traficante de couros e perfumes rude e vulgar jogar um xadrez tão devastador?

* * * * * *

Naquela tarde, sentamo-nos, empoleirados em banquinhos de três pernas, encarando o vento, para que os fios de cabelo se afastassem de nós. Estávamos no topo da casa de leme, a estibordo, o lugar favorito de Rachel no Borboleta, pelo menos entre os lugares que ela podia ir. Eu esperava um dia sair do convés e ouvi-la me chamando e rindo do cesto no alto da gávea. Ela adorava o teto da casa de leme porque podia ver quilômetros ao redor. Convencida de que seria capaz de ver a Europa à frente e a América do Sul atrás de nós da Gávea, ela sempre implorou para ir até lá. Eu ainda não havia desistido e proibi Cian de ceder aos modos inteligentes de persuasão da criança. Mas eu sabia que era apenas uma questão de tempo até que as duas subissem lá, nem que fosse apenas pela diversão boba de me aflorar os nervos.

Com um pedaço de pano de vela em volta do pescoço e cobrindo meus ombros, Cian cortou meu cabelo. Depois de muitos meses sem um corte de cabelo real, fiquei feliz por me livrar dele. Eu nunca gostei de ir ao barbeiro, mas me pareceu que havia algo muito sensual em uma mulher aparando os cabelos de um homem. Não estava apenas sentindo as mãos dela no meu cabelo, mas a carícia ocasional em meu pescoço enquanto ela trabalhava, bem como o calor dela tão perto das minhas costas. O banco, sem encosto, tornava o contato de nossos corpos muito mais íntimo do que uma cadeira comum.

Kaitlin tinha apresentado as tesouras à Cian quando ainda estávamos na Amazônia, minha irmã guardava uma tesoura em um de seus muitos bolsos, além de vários outros instrumentos e apetrechos. Quando ela notou o fascínio de Cian pela ferramenta de corte, ela deu de presente a tesoura a ela e mostrou como usá-la.

As três crianças sentaram-se de pernas cruzadas aos meus pés e ouviram com muita atenção enquanto Cian contava uma de suas histórias enquanto aparava meus cabelos. Billy Kane, também necessitando de um corte de cabelo, sentava-se com o queixo em concha, quase sem piscar enquanto aproveitava cada sílaba. Magnalana MeCinco, uma garotinha adorável que, já tendo desfrutado de umas cem escovadas nos cabelos ruivos, parava Cian com perguntas a cada momento, assim como Rachel. Billy e Magnalana tinham a idade de Rachel e os três haviam se tornado grandes camaradas. Eles brincavam o dia inteiro do convés ao porão, onde encontraram esconderijos maravilhosos e muitas coisas curiosas entre a carga.

Cian falava e eu, com correções ocasionais de Rachel, traduzíamos para Billy e Magnalana, que entendiam francês muito bem. Ela usava uma mistura de Yanomami e português, enquanto eu aliviava a história em língua francesa pelo bem das crianças.

– Estava no meio da estação seca nas profundezas da floresta tropical – disse Cian enquanto cortava e penteava meu cabelo – quando a velha Miki-Leya estava ofegante nas margens verdes e quebradiças do rio Mãe. As piscadas de seus olhos foram ficando cada vez mais longas enquanto o sol ia se pondo na floresta, na margem oposta do canal de água verde e preta. O som de pássaros brigando levantou sua cabeça, e ela se esforçou para se concentrar nos galhos de uma andiroba morta, pendurada sobre o rio. Agora havia mais urubus do que antes, e um recém-chegado estava repreendendo e bicando seu irmão por um lugar no galho onde cravar suas garras e esperar.

– O que são urubus, afinal? – perguntou Magnalana.

– Urubus são pássaros – explicou Cian – que vêm comer a carne dos animais quando morrem.

– Eles comem pessoas mortas também? – perguntou Rachel.

– Sim, pessoas também.

– Ei, espere um pouco – disse Magnalana – As pessoas morrem?

Bem, essa era uma pergunta inesperada da garota. Obviamente, pelo tom de sua voz e expressão, ela não tinha sido informada acerca da finitude humana. É claro que ela tinha apenas nove anos de idade, então poderia ser que ninguém próximo a ela tivesse falecido ainda.

Eu acho que a taxa de mortalidade na selva deve ser bem maior do que a que conhecemos, devido à falta de hospitais e organizações de apoio social, além de estar mais perto do limite da incerteza. Eu me perguntava como Cian lidaria com a questão. Ela responderia de maneira grosseira e prosaica como eu imaginava que faria a uma criança Yanomami, que provavelmente já havia testemunhado a morte muitas vezes, ou mostraria compaixão por uma menininha que pode ter levado uma vida protegida até esse ponto e pode não estar totalmente preparada para a ideia de perder a mãe ou o pai para a morte? Mas eu precisava ter me preocupado menos.

– Na primavera —começou Cian – flores amarelas e vermelhas, como crianças, crescem a partir das sementes que seus pais plantaram amorosamente no solo próximo. A mãe e o pai assistem orgulhosamente seus filhos crescerem durante o verão, enquanto os protegem da melhor maneira possível do sol brilhante.

As três crianças ouviram atentamente sem interromper.

–Pouco antes do início da estação das chuvas, quando os filhos das flores crescem até a altura dos pais e estão prontos para fazer sementes e produzir suas próprias pequenas flores, o corpo dos pais retorna à terra. Feliz em saber que eles completaram suas tarefas aqui neste mundo, seus espíritos voam longe para estar com seus… – Cian hesitou e olhou para mim.

– Deus? – eu perguntei.

– Sim – ela disse – os espíritos voam para ficar com o Deus deles.

– Você quer dizer – disse Magnalana e piscou antes de continuar – que mamãe e papai vão morrer?

Antes que Cian pudesse dizer alguma coisa, Rachel respondeu por ela

– Todo mundo morre. Mesmo nós, crianças.

– Todo mundo morre?! – Magnalana exclamou – Mas que plano estúpido, quem pensou nisso?

– E se nenhuma das flores morresse, como seria? – Cian perguntou – Ou suponha que todos os animais pudessem viver para sempre? Em breve, estaríamos todos cobertos por camadas e camadas de animais famintos, se mordendo em meio a pilhas de flores murchas. Por isso, Magnalana, todos os antigos devem morrer para dar espaço aos novos, como vocês três. – Ela acenou com o pente na direção das crianças —Em breve, vocês tomarão nossos lugares quando nossos espíritos retornarem à terra. A morte não é uma coisa ruim, é necessário que a terra tenha espaço para gerar nova vida e é por isso que precisamos que os urubus comam os mortos.

– Mas que coisa feia para eles fazerem.

– Feio, sim, mas você sabe, se ninguém aparecesse para comer todos os animais mortos, logo o chão da floresta seria coberto de corpos apodrecidos e ninguém ia querer morar lá.

– Sua mãe e seu pai estão mortos? – Perguntou Magnalana.

Nesse momento eu senti as mãos de Cian descansarem em meus ombros. Busquei com a minha mão as dela.

– Sim – ela disse finalmente.

– Então, onde você já plantou suas pequenas flores?

As pontas dos dedos de Cian apertaram meus ombros, e eu sabia que ela estava sorrindo. Minhas flores vão florescer em breve, minha querida, muito em breve. Ela voltou a trabalhar no meu cabelo.

– Miki-Leya é um gato? – perguntou Rachel.

– Sim, um gato bem grande.

– Que tipo de gato? – perguntou Magnalana.

– Ela é chamada onça-pintada e é o maior e mais feroz animal da floresta tropical. Sua pele tem uma bela coleção de amarelos, marrons e pretos, de modo que, quando ela se deita perfeitamente imóvel, é possível dar um passo a poucos metros de distância e nunca a ver.

– Mas os urubus a viram – disse Magnalana.

– Os urubus podem sentir a morte a muitos quilômetros de distância, mesmo antes que a vítima tenha consciência de seu próprio fim.

– E depois, o que aconteceu? – Rachel estava ansiosa para que Cian continuasse sua história.

–À medida que a escuridão se aproximava de Miki-Leya, seu filhote veio, mas já não havia leite para ele.

– Ah – Rachel e Magnalana disseram juntas.

– Miki-Leya não comia há muitos dias, e seu leite estava agora seco. Fraca demais para caçar, e sem carne, nunca mais conseguiria produzir leite para o seu filhote.

– O gatinho é amarelo, marrom e preto também? —perguntou Magnalana.

– Não – disse Cian. Ele é escuro durante o dia como à meia-noite, assim como seu pai pantera.

– Agora, onde está esse pai? – perguntou Rachel —Ele deveria estar lá para cuidar de sua família, os homens são sempre assim – disse ela a Magnalana.

Magnalana assentiu vigorosamente em concordância, balançando os cachos vermelhos por toda parte.

– As famílias de felinos selvagens são diferentes —disse Cian – Depois que o macho e a fêmea se acasalam, a fêmea afugenta o macho, ela prefere criar seus filhos sozinha. Miki-Leya sabia o que era melhor para o seu filhote, e se ela não tivesse ficado doente pela flecha do caçador que mordeu seu quadril, ela seria capaz de cuidar dele muito bem.

– Provavelmente um caçador HOMEM – disse Magnalana com nojo enquanto ela e Rachel olhavam primeiro para o pobre Billy, depois para mim como se Billy e eu tivéssemos conspirado para atirar a flecha letal.

Cian não comentou o sexo do caçador, apenas só continuou com sua história.

–Miki-Leya fechou os olhos, querendo descansar por um momento, então ela invocaria alguma reserva de força escondida no fundo de sua alma felina e tentaria despertar, mesmo que para uma última caçada, apenas a fim de alimentar seu filhote novamente antes de morrer.

– Qual é o nome do gatinho dela? – perguntou Magnalana.

– O nome dele é Tribi-Leya.

– Aposto que Miki-Leya nunca abrirá os olhos novamente – disse Rachel, com seu lábio inferior começando a fazer beicinho.

– Miki-Leya abriu os olhos novamente. Poderiam ter se passado alguns momentos, ou horas, mas o miado suave de seu filhote a acordou de um sono profundo. Enquanto ela se esforçava para levantar a cabeça e olhar em volta na escuridão, ela viu seu filhote por perto. E adivinhem onde ele estava?

– Onde, onde? – as duas garotas exclamaram juntas.

– O filhote dela estava nos braços de uma garota humana, sentada de pernas cruzadas, assim como você, a apenas alguns metros de distância.

– Caramba! – Rachel gritou.

– Sim, caramba mesmo. – disse Cian —Quando Miki-Leya viu seu bebê nas mãos de uma humana, ela encontrou aquela reserva escondida de força e ficou de pé. Ela odiava todos os humanos, e se algum deles tentasse levar seu gatinho… bem, seria o fim dessa pessoa, seja criança ou não. Ela estava preparada para rasgar a garota em pedaços mesmo que fosse apenas para tocar uma última vez em sua cria. Quando ela rosnou e deu um passo à frente, a garota gritou de terror e puxou o gatinho para perto do peito. Ao som do grito da menina, os urubus voaram para longe sobre as águas escuras.

Miki-Leya levantou lentamente a pata da frente, com as garras afiadas estendidas, pronta para arrancar o coração da garota. A menina recuou, tentando evitar o alcance da mãe felina furiosa.

– Não, não – Rachel e Magnalana choraram quando suas mãos se agarravam.

– Mas, quando Miki-Leya estava prestes a atacar a garota, o grande gato caiu na grama, ofegante. Ela não conseguiu mais se mexer, apenas seus olhos se mexeram quando ela olhou com ódio cruel para a pequena menina.

– Qual é o nome da garota? – perguntou Magnalana.

– Bem… – Cian hesitou, sua mão com a tesoura pousando no meu ombro – Eu acho …  – Ela começou de novo.

Eu olhei para ela e vi em seu rosto um conflito de sentimentos.

Que estranho, pensei e não traduzi nenhum de seus falsos inícios.

Cian raramente era incomodada por emoções, só a vi por três vezes perturbada. A primeira foi depois que ela encontrou os ossos de sua mãe na rede podre da vila, e a segunda vez foi quando eu a encontrei, sozinha em nossa cabine no navio, soluçando e esfregando o toco de sua perna direita.

Ela estava no meu beliche, onde preferia dormir quando era meu turno. Trouxe-a para os meus braços, mas não falei nada. Cada vibração e tremor do corpo de Cian era tão familiar para mim quanto os meus; ela queria conforto, não conversa. Depois de alguns minutos, ela limpou as bochechas e me beijou. Ela se sentou e eu a ajudei com o suporte de couro que ela havia formado para a perna. Foi projetado para amortecer a extremidade de seu membro de madeira depois de ter sido preso pelas tiras que envolviam seu joelho e a parte inferior da coxa.

– Dói frequentemente? – eu perguntei.

– Sim. – Ela afastou os cabelos do rosto enquanto terminava com as tiras de couro – Especialmente quando o tempo está mudando.

Esse era o máximo da extensão de qualquer reclamação que eu alguma vez ouvira dela.

– O barco salva-vidas está vazio?

Ela pegou minha mão e a pressionou contra o peito.

Em resposta, eu apenas sorri e a conduzi porta afora, depois seguimos à popa de estibordo, onde um barco salva-vidas de seis metros estava preso ao convés, com a lona solta em uma extremidade.

Uma criança impaciente nos levou de volta ao telhado da casa do leme e à história de Cian. Tão rapidamente quanto seu rosto pesara, ela afastou as lembranças com um aceno do pente e voltou a cortar.

– Vamos chamar a garota de Ravana.

– Esse é o nome verdadeiro dela? – perguntou Magnalana.

– Eu acho que o nome dela é Kate – disse Rachel.

– Não, Kate não. – disse Magnalana – Você acha que é sua mãe, Kaitlin?

–Não, eu não. Só gosto de Kate.

– Bem – disse Magnalana – Acho que Sierra é um bom nome para uma garota nativa.

– Desculpem, por favor. – Foi a primeira vez que Billy falou e isso nos pegou de surpresa – Eu acho que o nome dela é Cian.

Assim que olhamos para o garoto e sua estranha declaração sobre o nome da garota na história, tivemos que nos voltar para Cian e ver se ela refutaria uma ideia tão ridícula como a que o garoto sugerira.

Cian nos ignorou categoricamente, ela apenas colocou as mãos nas minhas têmporas, gentilmente virando minha cabeça para frente e continuou cortando meus cabelos. Ela ficou em silêncio por um momento antes de retomar sua história, deixando-me, e talvez às crianças também, para pensar se essa história era realmente ficcional. Cian era uma contadora de histórias talentosa, e eu suspeitava que ela estivesse tecendo um pouco de melodrama apenas para adicionar emoção à sua contação.

–Ravana viu, imediatamente, que a onça-pintada estava perto da morte, e ela sabia que se a mãe morresse o gatinho também morreria.

– Qual era a idade de Ravana? – perguntou Rachel.

– Ah, ela deveria ter onze temporadas, talvez doze —respondeu Cian —A selva fornece muitas coisas para comer, mas a única coisa que não pode dar é o leite materno. O bebê ainda não tinha idade para comer carne e, sem a mãe para alimentá-lo, ele certamente morreria.

– Onde estava a mãe de Ravana? – perguntou Magnalana – Talvez ela possa ajudar.

– Kasan, esse era o nome de sua mãe, havia deixado a vila naquela manhã. Ela foi às colinas de Calva para colher raízes de amora. Como você vê, Kasan era uma curandeira e precisava das raízes para fazer um preparado para as articulações duras e doloridas do velho chefe. As amoras crescem apenas no lado da tarde das colinas de Calva, então seria noite antes mesmo que ela voltasse. Na sua ausência, ela dissera à filha que ela, a menina, deveria entrar na floresta e reabastecer o suprimento de folhas, castanhas e raízes medicinais. A garota pegou sua bolsa de remédios e, quando sua mãe saiu pela trilha norte que levava às colinas de Calva, Ravana caminhou pela trilha sul que levava às margens do rio Mãe.

– O que é esse Rio Mãe, afinal? – perguntou Magnalana.

– Esse é o significado de Amazonas, sua bobinha – disse Rachel – Eu acho que você sabe qual é.

– Ah.

– Ravana juntou folhas a manhã toda e, ao meio-dia, acendeu o fogo e espalhou as folhas para secar nas pedras planas que havia arrumado ao redor da fogueira. Então ela espetou os quartos traseiros de uma anta que ela havia flechado mais cedo e inclinou a carne perto das chamas para assar enquanto ia a um riacho próximo pegar água. Após a refeição, ela examinou as folhas e descobriu que precisavam de mais tempo no fogo. Então, ela colocou o restante da anta em sua mochila de caça e pegou sua bolsa de remédios, pois sabia que nunca deveria deixar a valiosa bolsa muito longe de seu alcance. Ela então passou o arco por cima do ombro e deixou as folhas secando enquanto seguia descendo o Rio Mãe. Parava ocasionalmente para cavar raízes de urucum e, no final da tarde, alcançara a pequena clareira de grama marrom e quebradiça nas margens do rio.

Nesse ponto, Cian tirou alguns cabelos da minha bochecha e, com um floreio de mágico, tirou o pano dos meus ombros.

– Prontinho, acabamos.

– Não, não! – as três crianças choramingaram.

– E Tribi-Leya?

– Temos que ouvir o resto!