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«Então, vou estudar» despedi-me timidamente.
«É melhor» disse de novo a minha tia com tom de ameaça.
«Bem. Então, adeus e boa continuação sem mim» dirigi-me a Dominick.
«Até à próxima. Adeus, Vera» cumprimentou-me o padre, abraçando-me.
Peguei na minha mochila e noutra fatia de tarte e fui para o meu quarto, que ficava no piso superior, para refletir.
Posei a bolsa sobre a secretária vazia.
Como gostaria de ocupá-la com um belo computador, mas infelizmente não podíamos permiti-lo.
Troquei de roupa, tentando abrir com cuidado a porta estragada do guarda-roupa, na esperança que o Ahmed conseguisse repará-la, e sentei-me sobre a cama pensativa, mastigando as últimas migalhas de tarte.
O relatório de história que devia fazer para o dia seguinte podia esperar. Naquele momento tinha definitivamente de encontrar um modo para livrar-me do Ron. Antes morta que fazer uma hora de biologia com ele.
Podia dizer-lhe que a minha doença era contagiosa.
De certeza que uma coisa deste género o faria fugir rapidamente.
Estirei-me sobre a cama e comecei a planear mil soluções para evitar o Ron e, já que ali estava, para destruir aquela bruxa da Patty.
Por fim, adormeci e não pensei em mais nada.
Quando acordei era quase hora de jantar.
Como tinha a garganta a arder, decidi ir à cozinha beber um pouco de sumo de toranja que tinha aberto de manhã para o pequeno-almoço.
Ia a descer as escadas quando ouvi a voz do padre Dominick.
«…hemodose?».
«Sim, sabia-o. O Ahmed contou-me. Só se sentiu mal, não creio que seja nada de grave. Pareceu-te mudada?» comentou a minha tia.
«Não, de tudo, mas a Ordem já a tem debaixo de olho. Continuam a pedir-me relatórios atrás de relatórios e frequentemente, vem cá alguém para ver como está a situação. Ao que parece, pelo que percebi, chegam até a fazer-se passar por substitutos da sua escola. É uma vergonha!».
«O importante é que a Vera não se aperceba de nada! Ela deve continuar a viver a sua vida aqui comigo. Uma vida tranquila» murmurou a tia Cecília com a voz afetada pela emoção.
«Tem calma! Enquanto o cardeal Montagnard for vivo, não lhe acontecerá nada. Apesar dos pedidos do cardeal Siringer, a Ordem não pode fazer nada sem uma autorização de Montagnard e ele nunca permitiria que acontecesse alguma coisa à Vera» tranquilizou-a o padre Dominick.
«Pois».
Os dois ficaram em silêncio.
Por fim, despediram-se e o padre foi-se embora.
Fiquei parada no cimo das escadas.
Era a primeira vez que ouvia falar de cardeais e desta Ordem. Quem eram? O que queriam?
Mas sobretudo, porque estavam interessados em mim?
Queria pedir explicações à minha tia, mas sabia que, desta vez, tinha que guardar isto para mim.
Ninguém deveria saber que tinha escutado aquela conversa. Nem a tia, nem Ahmed, nem o padre Dominick.
Na manhã seguinte, custou-me a levantar. Estive até às duas da manhã a trabalhar no relatório de história e, a seguir, não consegui pregar olho por causa da conversa que escutei às escondidas entre a tia e o padre Dominick.
Pela enésima vez, estava atrasada e não consegui tomar o pequeno-almoço. Saí de casa a correr, apesar das reprimendas da minha tia que não queria que me cansasse e apanhei o autocarro por pouco.
Ainda não tinha entrado na sala de aula, Patty Shue, acompanhada das suas duas amigas, Claire e Martha, aproximou-se de mim ondulando as suas ancas sensuais, enfatizadas por uma mini-saia de tirar o fôlego e dirigiu-me o beicinho mais malicioso e despeitoso que conseguiu fazer com aqueles lábios infláveis, vermelhos escarlate.
«Vera diz-nos, como estás hoje? Prevês algum desmaio? Beh, caso percas os sentidos, sabemos quem chamar. Tenho a certeza que o Ron não hesitaria em fazer-te respiração boca a boca! Sobretudo depois das suas explicações, certamente que precisarás!» aquela bruxa sorriu.
E assim, já se tinha espalhado o rumor acerca de mim e do Ron.
Quem poderia ter-me humilhado perante todos, senão ele?
Felizmente, tinha feito uma hemodose há muito pouco tempo, logo a vista estava bem reativa.
Num instante, o meu olhar furioso correu a indagar o culpado.
Eis!
O Ron encontrava-se tranquilo no seu banco a copiar desenhos numa folha.
Aproximei-me.
«Ron» pronunciei com o tom de voz mais frio possível.
«Vera, olá. Imagina só, estava mesmo a pensar em ti».
«Ah sim?».
Óbvio, depois do que tinha feito!
«Sim, estava mesmo agora a passar-te alguns exercícios simples para esta folha assim, da primeira vez que nos encontrarmos, pode ser mesmo amanhã se quiseres, podemos examiná-los juntos. Aqui, por exemplo, deves escrever como se chamam as partes do corpo que te desenhei» disse-me todo emocionado, mostrando-me a folha.
Fiquei espantada. Seria possível que não se apercebesse do que tinha feito?
Antes daquela noite, todos pensariam que eu e o Ron, conhecido como “Hálito Podre”, andávamos juntos.
Sem sombra de dúvidas, deveria agradecer a Patty por tudo aquilo.
Não sabia bem quando nem como, mas após as aulas da manhã, todos reuniram-se no refeitório, onde estava um grande burburinho.
Durante a tarde, começaram os primeiros olhares e risadinhas.
No autocarro de regresso a casa, estava já noiva com o Ron há um mês, segundo os rumores que circulavam nas proximidades.
Faltou pouco para afixarem cartazes: “A história de amor entre a Pálida Vera e o Hálito Podre”.
Estava enojada.
Quando cheguei a casa, encontrei a tia Cecília com os cabelos amarrados numa suave trança dourada e com um enorme avental verde, determinada a preparar as conservas de tomate para o inverno.
Descalcei nervosamente os sapatos e atirei a mochila ao chão, antes de correr para a minha tia e carregá-la com os meus problemas.
«Aqui faz falta pão e mel» disse-me ao escutar quanto rancor havia na minha voz ao falar da Patty e do Ron.
«Por acaso, acreditas realmente que vou às explicações com aquele cretino?» desabafei.
Entretanto a tia preparou-me o lanche.
«Come para te acalmares» disse-me estendendo-me uma fatia de pão e ignorando as minhas palavras.
Devorei o pão, continuando a falar, cuspindo migalhas aqui e acolá. Todavia, por fim acalmei-me. Era o mel. Quando estava nervosa ou zangada, o sabor do mel tinha sempre um efeito relaxante em mim.
«Obrigada» sussurrei finalmente.
«Bem, então agora que já lanchaste e que desabafaste, aconselho-te a correr para o quarto para estudar biologia, se queres fazer-me mudar de ideias quanto às aulas com o Ron» exclamou a tia Cecília.
« Oh, obrigada!».
Corri a abraçá-la. Sabia que ia compreender!
«És a minha tia preferida!» acrescentei.
«Óbvio, sou a tua única tia».
Desatamos a rir juntas e depois pôs-me a estudar.
Prometi a mim mesma que melhoraria a minha média em ciências. Estudei biologia três dias seguidos e no fim, fiz uma prova oral.
Sete.
Aquela nota bastou para convencer a minha tia a anular o compromisso que tinha com o Ron.
Sentia-me no sétimo céu.
Não me interessava se o Ron tinha levado a mal, porque se tinha sentido rejeitado. Estivemos quase juntos de verdade.
Também não agradou à Patty, porque no espaço de dois dias, a minha história de amor com o Hálito Podre começou a desvanecer, até ser completamente esquecida.
Um dia, ao regressar da escola, cruzei a habitual cancela, que há já alguns dias tinha começado a ranger mais do que o habitual e corri para casa.
«Devo chegar-lhe óleo» disse-me Ahmed, referindo-se à cancela, enquanto reparava um bocado da cerca, não muito longe de mim.
«Olá Ahmed. Como estás?» perguntei-lhe.
«Hoje está sol, por isso, está tudo bem» respondeu-me.
Sorri-lhe solidária.
«Termino de reparar isto e depois vou fazer algumas comissões» acrescentou.
«Posso ir contigo?».
Quando fazia sol, não era possível estar em casa a estudar.
«É melhor não. Acabou de chegar o padre August e penso que quer ver-te» respondeu-me afastando-se com algumas tábuas na mão.
O padre August, aquele velho anão atarracado com o olhar maligno.
Tanto eu quanto a tia não podíamos vê-lo, todavia uma vez por mês vinha fazer-nos uma visita.
A tia Cecília explicou-me que, no fundo, o padre August era um bom homem e que tinham sido muito próximos, quando eu era pequena.
Ajudou a financiar os custos de saúde que teve quando me diagnosticaram aquela terrível anemia, por isso, seria sempre bem-vindo, apesar de me parecer um ser repugnante e desagradável.
Com relutância, entrei em casa.
No salão, a tia e o padre August estavam sentados no sofá a beber um café.
«Tesouro, chegaste» cumprimentou-me a tia com o mesmo carinho de sempre, ainda que eu tenha notado imediatamente uma veia de tensão na sua voz.
«Olá, tia. Bom dia, padre August».
«Vera, como estás?» perguntou-me com uma voz suspeita, enquanto continuava a olhar-me da cabeça aos pés, como se procurasse alguma pista sobre um possível agravamento da minha saúde ou qualquer outra coisa.
Dava-me sempre a impressão que eu tinha algo de errado, ainda que tentasse disfarçá-lo.
Apesar dos muitos anos de convívio, nunca me mostrou afeição como o padre Dominick.
«Bem, obrigada».
«A tua tia estava-me a contar que tomas as tuas hemodoses uma vez a cada três semanas».
«Sim, exacto».
«Muito bem. Aconselho-te a fazer sempre aquilo que diz a tua tia e se não te sentires bem, diz-lhe imediatamente».
«Assim o farei».
«Bem. Continuas a frequentar as aulas de catequese do padre Dominick, certo?».
Suspirei, já irritada com o interrogatório.