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A Estrutura Da Oração
A Estrutura Da Oração
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A Estrutura Da Oração

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Abro o tr?ptico apоs examinar o mundo em colapso. A minha vis?o recai sobre o lado direito, impregnado de ilustra??es complexas. Serа o inferno um lugar assim t?o barulhento? Questiono-me. Serа um grito infinito que faz explodir o cеrebro e as entranhas para depois nos incentivar a recolher os nossos restos? Ou serа que todos esses instrumentos musicais tingidos na pintura carecem de sons e o sil?ncio infernal е o destino dos hereges? O inferno n?o е o doce uivo do sil?ncio, disso tenho a certeza, е o fluxo de crepita??es que se fundem para dominar a alma. Por isso este condenado estа embutido nas cordas da arpa, e este outro infeliz estа sacrificado no gigante ala?de. Ent?o penso na minha condena??o e escrutino a este triste sodomita perfurado por uma flauta como o iniciador de uma grande estirpe de sofredores e е como se conseguisse escutar o seu sofrimento, como se de alguma forma enigmаtica a sua dor fict?cia se transfigurasse em cumplicidade dentro do meu intestino e me fizesse lembrar do horrendo pecado. Contemplo o homem que е abra?ado por um porco com vеu de freira, e е como se me tivessem introduzido no quadro, pois sinto o fedor dos sussurros obscenos no constante ruminar perto de mim, dentro de mim. Fecho urgentemente as portas deste terr?vel mundo espiritual e aparece a imagem do mundo terreno, uma paisagem que me parece ainda mais horr?vel. “О Mundo, estаs cheio de pecado. Protege-nos, Deus. Salva-me, Deus”. Preparo-me para a missa.

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Ave-maria pur?ssima, concebida sem pecado. “Eu pequei, Padre”.“Conta-me os teus pecados, filha”. “Tive pensamentos de lux?ria. Vi-o ontem ? noite, quase nu, e desejei o seu corpo, desejei-o com intensidade e ardor. Isso е muito mau, Padre?”

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O sacerdote escuta e reprime um suspiro de cumplicidade. Е a mesma histоria de cada crente, parcialmente desfigurada por uma leve matiz. Е o desejo. O desejo pecaminoso e repugnante. O Padre Misael, ao fim de cada ritual de natureza anаloga, acrescenta com a fоrmula do rigor e manifesta-a, como estа a fazer agora, com a mais normal das entoa??es, depois de ter escutado toda a parafernаlia ?ntima que implica uma confiss?o do esp?rito. “Que Deus, Pai misericordioso, que reconciliou consigo o mundo pela morte e ressurrei??o do seu Filho, e derramou o Esp?rito Santo pela remiss?o dos pecados, te conceda, pelo mistеrio da Igreja, o perd?o e a paz. Eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai, do Filho e do Esp?rito Santo”. No confessionаrio ouve-se um “Amеm” carregado de al?vio.

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Ponho-me atrаs da cabeceira e agito um frasco de colоnia de nardos com a qual humede?o as minhas m?os. Unjo na superf?cie do seu rosto e creio notar um pestanejar que е imediatamente aplacado pela for?a febril da febre. O menino arde. Eu tambеm, creio, mas por outras raz?es. “Dorme filho, que eu cuido de ti”. Quase a pegar no sono, levanto-me e noto que os medicamentos atenuaram a infe??o. Esfrego as m?os uma vez mais e acaricio os seus pеs com o bаlsamo. Dirijo-me aos meus aposentos, mais aliviado.

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“Louvada seja a аgua benta dos nardos que untaram o teu corpo. Descansa, que amanh? te levantarаs e andarаs”.

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Deliro, jа que vi de perto o rosto da besta, e isto sо pode acontecer nos meus sonhos. Е a febre. A sua baba inunda o meu corpo. Oi?o a sua expira??o e n?o tenho for?as para gritar, t?o pouco coragem para cuspir no seu rosto, nem sequer digo com saliva, mas com um olhar de nojo e horror. Choro, como е normal nos momentos de horror, e imploro ao cеu, como е normal num crente. “Manda a besta para o inferno, Senhor. Protege-me. Cuida de mim, Senhor. S? o meu amparo. Tu, Senhor, еs o meu pastor. Contigo nada me faltarа. Nada nem ninguеm me poderа atingir”.

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O jovem adormece finalmente, desta vez sem pesadelos, apоs o ataque de febre. O Padre, no seu quarto, disp?e-se a mudar o seu uniforme por uma roupa que lhe d? comodidade para descansar. Despe-se e contempla o seu corpo em frente ao espelho. Os p?los convergem na p?bis como um remoinho proveniente das coxas e do umbigo e envolvem a pеlvis chegando ao epicentro da sua zona genital, que se ergue, pouco a pouco, numa poderosa ere??o. “Livra-me do pecado, Senhor”, implora, sem sucesso. O seu desejo е maior que a sua capacidade de abstin?ncia. Mas de repente, sente-se invadido por um impulso, por uma rajada anormal que faz alargar o seu peito num sinal de satisfa??o e que deprime o fluxo de sangue que a sua natureza impulsionou atе o seu pеnis. Agradece a Deus, veste o pijama e deixa-se cair de joelhos em frente ? cama. “Obrigado, Pai”, apressa-se a expressar, com lаgrimas de conforma??o varrendo as suas bochechas. Hoje os seus olhos repousar?o com serenidade. Os seus ouvidos est?o tensos atе ao sil?ncio profundo da noite pac?fica. Parece que Deus o escutou. Pelo menos е o que o Padre Misael insiste em acreditar.

TER?A E QUARTA-FEIRA

Perfume e fedor

Adveniat regnum tuum.

Circula no ar, evaporando-se gradualmente, fugindo, divertindo-se e depois espreitando com timidez, voltando a manipular o meu olfato com o seu poder e com a impertin?ncia da sua apari??o. Recebo a fragr?ncia e sinto como se os m?sculos do meu rosto se esticassem num sorriso de prazer. Satisfa?o a minha necessidade de sentir o cheiro, infiltrado nas minhas narinas, do ar bals?mico carregado, acalmo a pressa odor?fica inalando mais fundo e perco-me no suor das flores. Ao abrir os olhos, a imagem do rosto do menino junto de mim, devolve-me ? realidade dos meus olfatos rotineiros, pois ao cumprimentа-lo, recebo o ar que mudou o aroma das suas bochechas para o cheiro horr?vel do meu hаlito matinal.

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Decidi que o menino deveria continuar de repouso, portanto, celebrei a missa sem a sua ajuda. Neste momento, a sua aus?ncia parece-me mais tolerаvel. Justifiquei o movimento pendular do incensаrio, cujo fumo marcou a minha pele, com uma ess?ncia de resina. Agora vejo-o recostado contra o sofа, assoando o nariz num len?o caqui enquanto uma dose variada de desenhos em movimento transitam pelo ecr?. Vou para a rua, rumo ao mercado.

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Malecоn estа completamente deserta. A frescura do rio brinda-me com um cheiro de аgua doce que se mistura com o simples aroma das palmeiras que adornam os seus contornos. O tr?nsito estа fraco. O mesmo beco de sempre me acolhe com o cheiro a cerveja, a urina implantada pelos cantos despreocupados, com postes manchados de pestil?ncia. Acelero o passo enquanto observo o nome de um estabelecimento novo, escrito em letras mai?sculas e em itаlico. “Um lugar de perdi??o, Senhor, e ainda por cima no meu beco favorito”.

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O mercado е um turbilh?o de odores. Os legumes e as ervas aromаticas, os gr?os e o marisco, os alimentos processados e as frutas, todos eles espalham uma extensa gama de sensa??es que invadem o olfato. Conduzo o meu corpo atе ? banca das especiarias. Fico impregnado com o cheiro da canela, dos cominhos, do cravo-da-?ndia, do piment?o-doce. Pago as especiarias com algumas moedas que Isaac, o vendedor, solteiro e com rosto carnudo, recebe em gesto de simpatia.

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Corto o robalo em fatias grossas que primeiro passo por аgua e depois, com a carne jа limpa, passo pelo sal e pelo lim?o. Refogo e coloco a comida num prato de porcelana. O seu aroma е forte e apetec?vel, tanto que Tomаs abandonou o seu posto diаrio de batalha para me controlar com a sua l?ngua esfomeada ao pе da cozinha, facto que talvez contradiga o meu ceticismo sobre a capacidade do seu nariz. Moo as bolinhas de pimenta, os paus de canela, o cravo-da-?ndia e os cominhos. Adiciono vinagre. Um l?quido lacrimal percorre-me os olhos e atiro as cebolas picadas para dentro da frigideira com o seu doce aroma. Acrescento o peixe com um pouco de xerez. Tapo e deixo a cozer em lume brando.

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Voltei uma vez mais a implorar pelo perd?o divino. “Estou arrependido de ter pecado por pensamentos e palavras, atos e omiss?es. Senhor, acolhe este pobre pecador para que volte para o Teu caminho e possa ser salvo por Ti”.

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Ali est?o eles, a dan?ar com alegria na podrid?o. Encantados com a sensualidade. A lux?ria satisfaz-se na armadilha do regozijo carnal e na concupisc?ncia. Os prazeres desonestos sublimam-se em peixes horrendos, em conchas abismais e outras merdas. Cabras, camelos, cavalos e aves ansiosas pelo gozo sustentado pela devassid?o. O espa?o fede a pecado, a lux?ria. Corrompem o ambiente com uma praga emanada do lado mais negro do nosso ser. Deixo de observar o quadro e certifico-me dos poucos minutos que disponho para o descanso antes que os sinos comecem a tocar.

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Estou prestes a celebrar a missa com um enorme cansa?o muscular. Bebo dois copos de аgua que abafam o ru?do do meu f?gado, ou pelo menos е isso que imagino, ou desejo. Coloco a batina. Sinto-me mais puro.

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O menino faz-me uma pergunta que me deixa pasmado. Obriga-me a retroceder atе que caio vencido no sofа. Incentivo-o a sentar-se do meu lado. Concorda, mas n?o sem antecipar um gesto que me adverte da disposi??o de n?o transgredir o seu propоsito. Acaricio uma mescla de cabelo que escorrega da sua cabe?a e coloco-a atrаs da orelha, lugar onde pertence. Sinto o seu olhar carregado de expectativa. Tento n?o dececionа-lo e digo-lhe que Deus е bom e misericordioso, que n?o o podemos conhecer fisicamente ou imaginа-lo com os perfis anatоmicos aos quais estamos habituados, mas esta aula de catequese n?o satisfaz a sua curiosidade. Mostro-me forte. Digo-lhe a verdade, que е preciso amar a Deus mesmo sem conhec?-lo. Diz-me, com uma cara de derrota e resigna??o, que Deus е complicado. Sо me sinto vivo ao experimentar o doce aroma a alm?scar que fica impregnado no meu nariz enquanto ele afasta as suas nаdegas do mоvel. Chamo-o. Volta-se com um olhar luminoso, com aquele olhar que me incita a agarrar-lhe pelas bochechas e a satisfazer os meus impulsos. Mas pe?o ao Senhor que me ajude, porque a ele nada е imposs?vel, e ent?o, com as for?as renovadas, encaminho o menino para o meu quarto. Digo-lhe que е um segredo. Revelo-lhe que conhe?o a Deus. E mostro-lhe.

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Deus n?o е pequeno, embora o pare?a a olho nu. Estа distante para poder ter uma maior perspetiva do mundo, е sо isso. O seu olhar, como sabemos, е omnipresente. Sentado no seu trono, a sua cabe?a estа coroada por uma coroa e nas suas pernas, descansa o livro sagrado. As suas costas est?o protegidas por uma longa capa imperial. Consigo v?-la agora, enquanto o Padre Misael me mostra esta pintura peculiar. A escurid?o do quadro causa-me medo. Contudo, resisto. No horizonte, por trаs da nеvoa que cobre o cеu, fechado no vidro c?ncavo, estа Deus, e consigo v?-lo. Agora jа o conhe?o. E vejo o seu sorriso.

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Preparo-me para dormir com o cheiro perfumado que provеm da sua nuca. Rezamos juntos, corpo a corpo, e pedimos a Deus que nunca nos afaste do seu caminho, a fim de nos poder exultar nos seus preceitos. Hа algo no ar que me impede de respirar normalmente. Tenho a absurda premoni??o de que estou a ponto de cair num pesadelo do qual n?o poderei despertar. Lа fora, come?ou a chover, muito suavemente.

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A manh? estа fria. A chuva refrescou o ambiente. Dormi tranquilamente, em paz com o meu esp?rito e protegido pela infinita misericоrdia de Deus. Fico mais descansado por saber que os pesadelos terminaram o seu trabalho de tortura noturna e que deram espa?o para uma trеgua. O meu otimismo n?o me garante que os derrotei. Uma parte de mim, sabe que conseguirei sair desta batalha contra o demоnio, mas outra, a mais frаgil, indica-me a dimens?o do meu fracasso, pois a cada momento a minha mente sucumbe ? tenta??o e cada parte do meu corpo infringe essa lei que exige a minha alma.

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Decidi tomar um banho. Tive a sensa??o de impureza na minha pele, n?o sо pelo fedor das minhas axilas, mas tambеm pela montanha de obscenidades que carrego no pensamento. Devo estar purificado antes de subir ao altar. Refrescar-me um pouco n?o me farа mal, de modo que come?o a ensaboar a minha pele. Tambеm lavo a minha alma com ora??es.

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A temporada de inverno aproxima-se e jа е poss?vel sentir o seu cheiro. Qualquer mortal o pode fazer, mas sobretudo os seres que est?o habilitados da melhor forma para tais necessidades. Por isso, Tomаs, ao contrаrio do que o clеrigo pensa, sabe disso melhor do que ninguеm. Reconhece como alheio o aroma etеreo que destila o solo perto da amendoeira. Por isso demarca o seu territоrio com frequ?ncia. A esta??o do ver?o, jа a terminar, е vencida pela humidade elemental dos ciclos. O cheiro da terra emerge e inunda o portal com o seu еter. Os antigos diziam que o petricor era o sangue dos deuses, a ess?ncia que corria nas suas veias. Hoje n?o passa de um aroma aclamativo que, de vez em quando, e desde que a sua qualidade de fuga n?o se desvane?a, causa-nos um pequeno desconforto, sem nos apercebermos de que е e sempre foi, ao longo de vаrias еpocas, o verdadeiro suor desta terra, o seu cheiro aflorado. Tomаs o compreende. O seu nariz n?o se desgastou atе ao ponto de o mundo lhe ser indiferente. Ele percebe alguma coisa de odores. Compreendeu algo na sua longa vida de c?o. Por isso deixa de urinar na amendoeira e tende-se a uma postura m?stica rara, jа derrotado pelo clima, sobre as folhas h?midas que formam um colch?o natural. O seu olfato real?ou-lhe a sagrada condi??o das esta??es. Agora, finalmente, uma nuvem esquiva brinda-o com um pouco de sol que a sua pele agradece.

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Encontrei um velho amigo no mercado. Tivemos uma conversa agradаvel, mas breve.

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A senhora Salomе chegou enquanto estive ausente. Explica-me, em forma de justificativa, as suas pen?rias. Digo-lhe que evite as preocupa??es, que compreendo a situa??o e que tire a semana de folga. Insiste em preparar o almo?o de hoje como forma de compensa??o pela futura aus?ncia. N?o irei implorar. Fecho-me no meu quarto enquanto a senhora cozinha e tiro uma garrafa de vinho do meu lugar secreto. Come?o a beber com longos goles.

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A garrafa estа a metade e deixo-a sem qualquer precau??o sobre a mesa de cabeceira. O vinho ingerido provoca-me uma leve sensa??o de tontura que pretendo expulsar com uma chаvena de cafе. Imploro por um banho de аgua fria, mas a senhora Salomе diz-me que a comida estа pronta. Engulo a sopa com ressentimentos. O calor acalma o vazio do meu est?mago, o estranho desconforto causado pela bebida. Levanto-me da mesa olhando para o menino que come e dirijo-me aos meus aposentos com uma enorme vontade de dormir.

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Entreabro os olhos e a primeira imagem que vejo е a do mundo. A minha bebedeira n?o е adequada para perscrutar as del?cias imundas do seu jardim. Imagino o corpo nu do menino com verdadeira lux?ria e depois volto a adormecer. Quando acordo, apercebo-me de uma posi??o incomum do lado direito do quadro pintado. Suponho que alguеm tenha revisto a pintura. A senhora Salomе estа proibida de entrar nos meus aposentos e sempre foi respeitosa, portanto a minha ?nica suspeita recai sobre a curiosidade do mi?do. N?o me irrita, mas tambеm n?o me agrada a sua invas?o. E ent?o, sinto a pastosidade que manchou as minhas cuecas durante o sono.

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Hoje vieram menos pessoas ? igreja do que ontem. No entanto, os meus serm?es foram mais extensos.

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O ?ltimo livro da B?blia anuncia um inferno repleto de fogo e enxofre como condena??o para aqueles que traem as leis do Senhor. Um inferno de fetidez, de vapores fedorentos, seria um tormento insuportаvel, mesmo para qualquer alma alheia ?s debilidades do corpo. Defeco calmamente e com alguma dor. O meu esf?ncter expulsa um gаs em forma de um guincho agudo. Cheira mal, mas aspiro-o, imaginando um tormentoso inferno pestilento, saturado de efl?vios fedorentos e, aqui sentado, o cheiro sobreposto ? imagina??o incita-me ? nаusea. Abro um pouco da porta, permitindo que circule um pouco de ar fresco que sacuda os miasmas excrement?cios, o ar viciado que contaminou o meu organismo.

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Tomаs fareja-me a perna, provavelmente por ter sentido o cheiro a sab?o no meu corpo apоs o banho. Come?a a emitir grunhidos desagradаveis. Puxa-me pelo tecido do pijama e rasga-o, inundando-o com a sua baba. “C?o feio”. Agora vejo-o afastar-se, satisfeito com a sua brincadeira. Tiro o pijama e vejo-me nu em frente ao espelho. N?o resisto a fazer uma car?cia ? zona dos meus test?culos. Um fluxo elеtrico faz-me tremer. O meu pеnis incha num tom vermelho-escuro. Ao reagir, afasto-me do espelho com horror. Tiro outra roupa e tento esquecer os meus desejos.

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O Sinеdrio dos sentidos acolhe com agrado a proposta de trair a alma.

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Tiro-lhe a camisa com uma serenidade que nem parece a minha. Mas s?o as minhas m?os que despem o seu tronco. Deito-o com o rabo virado para a minha cara, que afasto imediatamente, corando instantaneamente. Acaricio as suas costas que provavelmente estar?o a queimar com o fresco do mentol. Os seus pulm?es jа o sentem, tenho a certeza, pois as minhas m?os esfriam ao ritmo das massagens. Contemplo pela ?ltima vez o seu rabo perfeito de jovem dominante. Volto-o com o seu rosto virado para mim. Meto o mentol sobre os seus peitorais e aproveito para apalpar os seus mamilos t?midos que emergem sem ousadia. O cheiro forte do eucalipto penetra-me.

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Esta madrugada, ambos dormem com o ruminar da chuva a a?oitar a rua. Nem o Padre Misael teve o sonho da faca, nem o jovem Manuel a vis?o da besta. Talvez tenham desaparecido de vez. Estamos no limiar de um novo dia. No centro da cidade, a chuva arrasta todos os pivetes da rua do bilhar. A chuva forte limpa a velha аrvore do pаtio. Durante as chuvas, alguns ingеnuos afirmam que е Deus a chorar por todos os pecados da humanidade. A imagem mais acertada n?o estaria simbolizada pelas lаgrimas divinas que caiem sobre o mundo, mas pelo chiado da urina que nos encharca, como o de Tomаs, que agora descasca a casca da velha amendoeira. De uma forma ou de outra, afinal е do corpo do Deus imaterial que provem o l?quido que nos lava.

QUINTA-FEIRA

Frio e calor

Fiat voluntas tua, sicut in caelo, et in terra.

Sou sacudido por uma descarga ardente cuja gеnesis е o occip?cio e parte em ?xodo destilando por toda a minha coluna dorsal. Os meus tend?es despertam e obrigam-me a esticar o comprimento do meu corpo na prazerosa dor que е consumida de forma orgаstica nas minhas cuecas. Sinto como o meu pеnis vai descendo lentamente, derrubado pelo prazer convulsivo da polui??o, enquanto na minha alma se forma um vazio que n?o consigo suportar. O frio desliza pela janela aberta e balan?a a cortina com um uivo l?nguido e consecutivo. Observo como o veludo estremece sobre a parede, embate no vidro da janela, contra a moldura feita de pinheiro. Sinto a brisa deslizar e colar-se ?s minhas axilas, agitando-me a pele numa rajada que arrepia o meu corpo todo. Suspiro. Separo-me do interior maculado pelo sеmen. Levanto-me e oro pela fraqueza do meu corpo.

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O calor do cafе encoraja-me a deixа-lo. Prefiro ingerir o sumo de p?ssego com pequenos golos. O menino conta-me uma histоria um pouco profana, mas n?o me atrevo a repreend?-lo. Apenas olho para ele e esbo?o um sorriso frio. Hoje tambеm n?o me fez companhia na missa e fez-me tanta falta, principalmente quando o bispo Pio deu a b?n??o. Observo-o e maravilho-me com as suas fei??es, com o seu olhar despreocupado, com o seu cabelo despenteado pela manh?. Levanto-me rapidamente da mesa, tentando desviar o olhar que continua voltado para ele, uma e outra vez.

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Tive tremores. Hoje n?o sairei de casa nem sequer para atender os paroquianos que est?o a preparar-se para a sexta-feira Santa. Deixei alguns compromissos menores ao cargo de outrem, seguindo a recomenda??o do doutor. O mi?do prepara-me uma infus?o que ingiro com os medicamentos. Ao voltar-se, pude notar o movimento das suas nаdegas num vaivеm provocador. Rendo-me ao sono.

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Vejo o rosto do rapaz ao acordar. Esteve a fazer-me companhia durante todo o tempo em que estive com febre. Diz-me que fez o almo?o e conforta-me o corpo com uma sopa quente que insiste em dar-me ? boca, colher atrаs de colher. Mas depois vem um momento de tens?o. Repreendo-o por ter examinado a pintura sem o meu consentimento e responde-me que sо queria saber o que continha o quadro. N?o е uma quest?o de proibir-lhe o conhecimento, mas considero que deveria ter consultado antes uma voz que lhe confirmasse se estava ou n?o capacitado para tal conhecimento. Responde-me que se sente apto e implora que o guie pelo quadro. Apоs uma luta de s?plicas e rejei??es, cedo ao pedido e permito-lhe abri-lo. Ele faz uma cara de surpresa. “Е lindo” diz, “mas horr?vel ao mesmo tempo”.“Е a nossa alma”, digo-lhe ou penso simplesmente. O choque residual da febre deixa-me tonto. Neste momento sо me dа vontade de afastar-me do menino, de gritar com ele para que saia do meu quarto e que desapare?a para sempre, que Deus me revelou que ele е um emissаrio do demоnio. Sou invadido pela vontade de o excomungar da minha vida. Sei que farei tudo ao contrаrio, porque me ergo para ele e pouso uma m?o sobre o seu ombro e a sustento num abra?o cheio de inten??es. “O que estаs a ver е um para?so, um inferno, e isto aqui”, digo-lhe com uma voz magn?nima indicando-lhe a parte central, “е o mundo”. “Por agora jа chega! Teremos tempo para o examinar parte por parte”. O meu corpo n?o resiste ao impulso e beijo-o na bochecha enquanto des?o a m?o atе ? fenda das suas costas. N?o reage em forma de rejei??o. Pede-me, inesperadamente, que lhe d? a b?n??o.

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Mandei o mi?do ao mercado para fazer compras. Sinto a sua aus?ncia e tento combater o desejo com uma ora??o, mas ao estar ajoelhado, as palavras ficam-me presas na garganta. Desta vez n?o consigo rezar. Levanto-me, tomo um duche de аgua morna, e preparo-me para o receber o mais arrumado poss?vel.

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O menino finalmente chega, mas infelizmente vem acompanhado pela menina Raquel, uma mulher prestativa ? disposi??o da Igreja, jovem, apesar dos seus quase quarenta anos, solteira, apesar da sua beleza. Atrаs dela entra uma comitiva de senhoras que se juntaram para me fazer uma visita e oferecer-me frutas, compradas precisamente, imagino, ? bela solteirona. Tomаs cumprimenta com latidos de indigna??o. Recebo-as com aparente agradecimento, dando-lhes, com a autoridade que me conferem, algumas advert?ncias, mas tambеm uma ou outra tarefa para a prepara??o da prociss?o de amanh? e despe?o-me delas de forma delicada alegando o pretexto do meu repouso. Fecho a porta atrаs delas, com o gume de ferro bolorento e dobradi?as enferrujadas, e vou ao encontro do rapaz por toda a casa.

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Convido-o uma vez mais a entrar no meu quarto. Mantemos uma conversa sobre certos aspetos teolоgicos que ele debate com leve consentimento. Instruo-o enquanto pouso a minha m?o aberta sobre a sua apetitosa coxa carnuda. Incentivo-o a fazer uma ora??o em conjunto. Coloco-me atrаs dele e juntos proferimos o nosso pedido habitual. Sinto o calor do seu corpo que abafa o frio do ambiente e, ao mesmo tempo, refresca o ardor das minhas entranhas.

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O corpo vence-me. Deito-me com o sabor das frutas ainda patente no meu paladar. Ensaio uma ora??o que se derrete na tentativa. A minha cabe?a estа em outro lugar, na figura do mi?do. Dirijo-me com passos cambaleantes atе ? sua porta. Entreabro-a e vejo o seu corpo adormecido no prazer da sesta numa postura fetal com um belo traseiro a apontar na minha dire??o, convidando-me a acariciа-lo, a dar-lhe uma dentadinha definitiva. O meu corpo gelado ferve de febre ou de algo mais. Numa explos?o de lucidez, volto para a minha cama.

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Acordei com a viscosa sensa??o do suor colado ? minha pele. Observo o brilho do sol da tarde que se reflete no espelho e inunda o quarto com o seu resplendor, invadindo cada esquina. Entendo a necessidade de me lavar, pois uma onda de calor invade o quarto e as minhas virilhas est?o pegajosas. A febre jа passou. Imploro por um pouco de аgua fresca.

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Enviei as indica??es aos fiеis por escrito para a prociss?o da sexta-feira santa. O menino foi a minha companhia enquanto escrevia a mensagem que depois encarregou-se de entregar, estimulado pela promessa de ensinar-lhe uma parte do quadro. N?o consegui conter o meu interesse dos seus movimentos, o meu olhar recaiu sobre ele a todo o momento. Fez-me atе desviar a caneta em algumas caracter?sticas.

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A caixa do disco possui como capa a imagem de um caminho cercado por folhas outonais que se perdem num horizonte sugestivo. A passagem amarelada atravessa um bosque de absoluta gentileza. Nenhum pаssaro estraga a tranquilidade. Nenhum animal se atreve a profanar a serenidade do pequeno universo de folhas e terra. Todos est?o escondidos para, de forma fogosa, inaugurarem um para?so infernal. Coloco o disco no aparelho, obrigando-o a girar rapidamente. Aquela geringon?a transforma-se num min?sculo turbilh?o infinito que gira a milhares de rota??es por minuto. A m?sica invade a sala, muito lenta, como se estivesse a lutar por acordar de um sono imposto por for?as restritas, inalando sossego, absorvendo sil?ncio, mantendo-se no espa?o que depois ocuparа com a sua tonalidade imperial. Mas serа o frio. O baixo marca o ritmo, prosseguindo de forma cont?nua, jorrando com um crescendo que matiza as t?midas interven??es dos violinos: s?o os passos do caminhante a quem pressiona alguma tribula??o, s?o os rangidos do gelo a ponto de quebrar-se. Agora, soam os raios queimados pelo violino solista, o tormento da orquestra ruge e agita o espa?o e vibra aos pеs do desgra?ado. A competi??o come?a com o impulso do baixo que pulsa com insist?ncia e marca rapidamente as pegadas. A imposi??o magistral do violonista principal invade, atingindo com as suas rajadas de vento gelado, e o intenso frio obriga a tremer e imp?e o ranger de dentes.

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“Estаs a ver esta zona aqui”, e mostra-me a parte superior do lado direito da pintura aberta. “Todo o quadro simboliza os supl?cios do pecador. Mas esta parte daqui, especificamente, е a imagem tоpica, usual, que fazemos do inferno. Enxofre a cair numa chuva cont?nua, montanhas destru?das e cobertas de escurid?o e pessoas num sofrimento indescrit?vel”.

“Nesta zona”, mostra a parte central com o dedo indicador desenhando uma elipse, “o gelo marca um grande contraste com o fogo de enxofre, porque dentro da conce??o do inferno como lugar de tortura eterna, um espa?o de gelo е um dos lugares mais horr?veis. V? como se racha aqui e o pobre homem fica ? merc? da аgua fria”.

“Nesta parte”, mostra a inferior, “estа aquilo que na arte chamamos de inferno musical, devido ? utiliza??o de instrumentos musicais como s?mbolos de tortura. Muito comum em certos pintores m?sticos. Estаs a ver esta gaita, mais para aqui estа o ala?de, aqui estа a harpa. E aqui, uma flauta. Consegues ver?”

Questiono-o se o inferno е mesmo assim. Pela janela noto que jа е de noite.

“Bom”, diz-me, “o desespero e o mart?rio, de certeza que est?o bem representados pelo autor, e aqui sobre este quadro, por parte do imitador, que е um intеrprete, como prefiro chamar-lhe”.

Pergunto-lhe como е que v? o inferno atravеs do que diz a sagrada escritura. N?o responde. Parece imerso numa reflex?o que escapa ao momento e ?s minhas d?vidas. Estа realmente a perguntar-se de como serа o inferno.

“O livro sagrado mostra o inferno como um lugar de incandesc?ncia perpеtua onde as almas ser?o lan?adas para os lagos de enxofre. Е assim que o pintor o retrata na parte superior desta obra. De facto, Cristo menciona-o constantemente, mencionando determinadas premissas, tais como o fogo que nunca se apaga, o lamento e o ranger de dentes, o castigo eterno”.

Fala sem olhar para mim, como se estivesse a falar consigo prоprio.

“Hа sеculos que se considera o fogo e o gelo, ou melhor dizendo, o calor e o frio, como os sofrimentos mais atrozes num lugar de castigo eterno. Um grande poeta da antiguidade descreve uma parte do inferno com a habitual chuva de chamas, e outro segmento, е o dos traidores, formado na sua plenitude por gelo. O demоnio, como regente deste espa?o de perdi??o, estа enfiado a partir da cintura na superf?cie gelada. Chora com os seus seis olhos e agita as suas seis asas enfurecidas”.

Imagino um inferno de gelo. O Hades seria um para?so em compara??o. Uma tortura sem fim no entorpecimento perene. Mas o que o meu corpo tolera agora е o calor. Um calor intenso que se prolonga ? medida que avan?a o ensinamento do padre Misael e que me oprime com o ar carregado pela sua aproxima??o, t?o prоximo. Reconhe?o as suas palavras como uma forma de sabedoria espiritual. N?o quero aborrec?-lo mais com a futilidade dos meus questionamentos. Pe?o a sua b?n??o e concede-ma com grande for?a, depois esculpe-me um beijo sagrado na boca.

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