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Bestiário Americano
Diego Maenza
Mitos urbanos e lendas de todo o continente americano se condensam neste poemário. Por suas páginas transitam diversos espectros, tal como invoca e enumera os Chupa-cabras em um dos poemas: ”Criaturas da noite e do sol. A Mulher do véu, Muqui, Yasy Yeteré, o Homem-Jacaré, Kharisiri, o Silbón, a Viúva Negra, a Telesita, o Curupira, Tata Duende, Cadejo, o Justo Juiz da Noite, a Mona Bruja, a Santa Muerte, o Demônio de Dover, o Wendigo, a Mulher do lenço, a Mulher da meia-noite. Criaturas do submundo, juntemo-nos nesta nova era, em que a humanidade decaiu e é a escória do universo”.
Diego Maenza
Bestiário americano
BESTIÁRIO AMERICANO
DIEGO MAENZA
Traduzido por Daiane Januzzi
www.traduzionelibri.it
www.diegomaenza.com
© Diego Maenza, 2018
© Tektime, 2020
© Daiane Januzzi (tradução), 2020
www.traduzionelibri.it
www.diegomaenza.com
BESTIÁRIO AMERICANO
DIEGO MAENZA
Traduzido por Daiane Januzzi
AMÉRICA DO SUL
A MULHER DO VÉU
(Quinteto romântico de um decapitado equatoriano)
Veneno nupcial no
estertor da embriaguez.
Uiva a dor que escapa de teus poros
quando desmascara tua dentadura
e exercita a carícia de Tânatos.
Chuva de prismas escuros derramados.
Vulva pútrida que entorpece a felação.
Quem te beijou testemunha teu perfume,
mas aqueles a quem tocou estão mortos;
logo, falei com a morte.
Vielas estreitas te veneram,
mãe da escuridão, esposa do sonho,
amante do enxofre, amiga do antracito.
A magnólia expulsa o suor do teu útero:
rasga avenidas equatorianas como carniça.
Desvia o jovem e o ancião de maneira igual.
Teus postulados filosóficos: sexo e vingança.
Quem te viu legitima tua formosura,
mas agora são padres ou estão nos manicômios;
portanto, falei com os vagabundos.
Uma noite, ébrio de amor, te alcancei.
Encontrei-te negra como o silício
e eu, pálido como um lago
que refletia a lua do teu sexo.
O suicídio é a forma mais pura do amor.
O MUQUI
(Poema humano de um mineiro peruano)
Pertenço às minas.
Ao amanhecer, tudo termina ou tudo começa.
O corolário dos aleijados é um cântico de dor.
Masco uma folha de coca enquanto me masturbo
refletindo sobre a paralisia do materialismo.
Sou esquivo, ainda que meus primos sejam gregários
e circulem pelos riachos como um exame de hilaridade.
Decifrei seus quipus e suas paixões,
estudei o ouro e o homem.
Pertenço à água
que lava também os recantos mais sombrios:
um mineiro passa com suas axilas malcheirosas,
bate sua cabeça contra uma pedra negríssima.
Como poder falar então da paralisação da categoria
se seus filhos, jovens e ninfas, não comeram?
Não tenho pescoço: como poder explicar o existencialismo?
Eles tremem: gritam de frio; eles berram: comem fome.
Uso poncho: como crer no deus sol, se nos abandona?
Como musgos: como confiar em Huiracocha se não há milho?
Uso chapéu: como progredir se nos trocam as ideias?
Sou pequeno: a natureza humana fede
tanto quanto a natureza dos deuses.
Eu cheiro mal, assim como você – e assim até o infinito.
Sou o murik que dá a libertação
das transparências que se aglomeram depois da tarde.
O caminho para a salvação conduz a uma mina
e eles são os muriskas que se deixam conduzir.
Me viram em Cuzco, em Cajamarca e Arequipa.
Os mais ousados sonham em prender-me em suas terras.
Não sei se a laringe que estudei ontem pertencia
a um boliviano ou a um peruano; a retirei intacta do Titicaca.
Me acusam de roubar as ferramentas dos mineiros.
Me vanglorio de cometer travessuras mais sublimes.
Hoje brinquei no umbigo de um lago
e em troca, dei como caridade duas pepitas de ouro.
O sangue da humanidade segue destilando sobre as pedras.
Depois me internei no Uku Pacha.
No crepúsculo, tudo termina ou tudo começa.
YASI YATERÉ
(Lamento de um adolescente paraguaio)
O peito esbranquiçado, os cabelos girassóis.
Estranho anão albino no meio de morenos estúpidos
propicia o excesso dos inocentes.
Lilith e Asmodeus foram seus ancestrais.
A eles, obedece o cetro feito de ramos e ouro.
O brilho é seu amigo ao abandonar a lua.
Percebe o estalar da relva e te observa pela folhagem.
Te obriga a enlouquecer enquanto toca seu instrumento.
Oferece frutas e mel silvestre à tua adolescência desnuda.
Se é rapaz de seu agrado: beijo na boca.
Se é donzela: mordida na nuca.
Há quem afirme que no céu não há luz,
que a escuridão é ventríloqua e
Yasi Yateré, o melhor intérprete de seus monólogos.
Também estão os animais otimistas.
Creem que o pequeno gênio da flauta apenas embriaga
com invenção para controlar as massas
de anêmicas criaturas que se perdem na canícula.
Yasi Yateré espreita nos galhos.
Yasi Yateré espanta sapos, papagaios e antas.
Yasi Yateré não faz a sesta.
O HOMEM-JACARÉ
(Poema existencial de um jacaré colombiano)
Alguns garantem que tenho corpo de jacaré
e cabeça de homem.
Eu digo que meus pensamentos são humanos:
vil emaranhado de registros negros.
Há quem diga que tenho cabeça de homem
e corpo de jacaré.
Eu digo que meu coração é bestial:
verme anormal que nada no caos.
Um dia, copulei com uma sereia e seus lábios
eram flores de cristal trepanando o pântano.
Anoitecia e continuávamos acasalando.
Ela gemeu e eu disse “Te amo”.
Me apaixonei pela sereia e seus lábios leves,
a sutileza de seus encaixes imolando minhas escamas.
Foi a última noite que a vi no rio Magdalena
e vagueei por suas margens para meu próprio escárnio.
Os espectros criam suas próprias lendas
e projetam suas frustrações em minha vida.
Intrometidos esporádicos que escurecem o dia,
tristes espectadores alimentando a noite.
Penso como homem e sinto como besta.
Quando me transformo em homem, sou depravado,
produzo a sustentação de pálidos slogans.
Quando me converto em besta, sou sensível
e me apaixono pelas criaturas da água.
Quando me converto em homem, sou a besta.
Quando me aniquilo, sou a ressurreição do charco.
Sou um jacaré com cabeça de homem
ou sou um homem com corpo de jacaré?
Quando degenerei minha natureza e me converti em humano?
Todo dia, luto para não me transformar em monstro.
Procuro a sereia entre os escombros
que originaram os estuários de pessimismo.
De Plato a Bocas de Ceniza,
sempre me verão nas costas do Caribe.
O KHARISIRI