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Cores
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Cores

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Cores
Patrizia Barrera

Uma pequena coleção de contos surreais de forte impacto emotivo.

Uma pequena coleção de contos surreais de forte impacto emotivo, cada um marcado por uma cor. Um chamado constante aos fantasmas da vida interior, retratados com intensidade e delicadeza.

Patrizia Barrera

Cores

As vozes da Alma

Direito Autoral

PATRIZIA BARRERA 2020

ALL RIGHT RESERVED

Tradução de

André Spiller Fernandes (https://www.traduzionelibri.it/profilo_pubblico.asp?GUID=ca04cf7e9eb5292d3844f8d203a0cbc4&caller=traduzioni)

RHA PRODUCTION

CORES, as vozes da Alma

Escrevi o livro sem pensar a respeito dele, mas literalmente escutando as vozes que me vinham das profundezas, daquele intangível que defini como minha Alma. São vozes, reflexões e histórias fora do tempo, nascidas em um lugar remoto que é a fantasia, mas que se inspiram na minha vivência e nas experiências psíquicas que colhi pelo caminho. Cada conto é marcado por uma cor e uma imagem, para oferecer a vocês uma experiência universal e arquetípica. São contos intuitivos, pouco lógicos, quase surreais.

Lê-los é abrir uma janela para um mundo espiritual coletivo que está em cada um de nós.

Fico feliz que vocês possam se presentear um momento de evasão e reflexões, com seu coro de recordações de cores intensas, patrimônio incomparável de nossa existência.

Patrizia Barrera

ÁGUA

Sou a água que borbulha nos vales,

que lambe o prado com suas úmidas mãos

E sou a água que cai densa do céu,

que docemente se acumula no escuro oco das árvores.

Água dos cumes nevados,

água áspera e escura que chove seca nas flores.

Onde quer que esteja,

e quem quer que eu seja,

sempre serei água.

As gotas amargas, os pingos ardentes

nascidos

do teu amor por mim.

Cores

Azul

Foi naquele verão que me tornei sua mulher. Ainda me lembro das macieiras sobre os campos, como soldados em festa, e do longo caminho que nos separava do bosque.

Ali ficava nossa casa, e foi ali que aconteceu.

Eu era jovem e estava perdida naquele emaranhado de vozes, no turbilhão de cores que precedem o crepúsculo, mas sentia a noite como uma amiga e desejava que viesse, que meu leito de esposa ainda intacto se vestisse de rosa e me acolhesse em um ninho, como no romance Aquilotto implume. Eu levava seu rosto esculpido nos olhos: a testa alta, o olhar severo, os lábios cheios. E depois as mãos. Aquelas mãos incansáveis e curiosas, que sabiam aprisionar o mundo em uma tela, obrigar o dia a parecer noite, transformar a velhice em juventude. Aquelas doces mãos que sabiam chorar. Minha vida e as mãos dele: para mim, aquilo era o universo inteiro. Foi assim por um ano, longos dias marcados pelos meus passeios no bosque e seus quadros, meus olhares em direção ao riacho e suas cores. A natureza ficava confinada ali, prisioneira. Aquela era a minha cerejeira morta no inverno que continuava a viver, e aqueles eram os fogos da noite quando a colina dançava. E os desejos emudecidos, as emoções sofridas, tudo se confundia no momento em que o pincel se alargava, descobrindo ou escondendo. Às vezes, ele pintava por horas. Depois, como se despertasse, olhava ao redor e me reconhecia, e só assim eu sabia que a noite havia descido. Ele me pegava, e nos amávamos. Sobre meu corpo, suas mãos desenhavam ainda, e não havia paixão nele. Apenas fantasmas, apenas cores.

Eu não compreendia. No entanto, era bonito seu mágico interesse pelos meus cabelos, pelos meus seios. Ele me olhava e, no fundo, eu era sua mulher. Falava-me de sua alma confusa, dos sentimentos reprimidos que voltavam a angustiá-lo a cada noite, dos projetos para novos quadros.

Ele adormecia enquanto falava, como se estivesse exausto. Não sei por que, mas eu não queria que ele dormisse. Eu sentia como se mergulhasse na escuridão sem poder ver o fim. Seus quadros faziam-me companhia e, quando compreendi isso, decidi que não devia perdê-los. Foi o que jurei a mim mesma e foi o que enfim consegui; agora sou eu mesma cores.

Às vezes acontecia de ele partir para expor os quadros, e eu ficava sozinha. Nesses momentos, eu vagava inquieta sem saber o que fazer, nos meus dias intermináveis. Escrevia para minha mãe, ou ia até o lago, ou dormia, ou desistia de tudo sem nunca terminar nada, em meio à angústia. Olhava para as paredes vazias, as telas nuas, os pincéis sobre a lareira, sem ninguém que lhes desse vida. Era como se o mundo inteiro desaparecesse diante de meus olhos; do universo sonhado, não restava nada além de migalhas. Tudo me fora roubado, seus quadros vendidos a desconhecidos que não sabiam estar comprando minha alma junto. Sentia-me saqueada e traída, tinha visto nascer um filho sem poder segurá-lo.

Depois ele voltava trazendo consigo sua magia. Daquelas mãos nascia uma rosa, um raio de sol, ou também a escuridão. Do nada apareciam anjos de rostos puros e inocentes ou garotinhos infelizes no colo de mulheres maltrapilhas; e corpos esmaecidos, cenas de loucura, de alegria, de amor. Observando aqueles rostos, percebia que já os tinha visto dentro de mim e, passando o dedo naquelas telas, esperava que tudo voltasse a mim. O medo de perdê-las de novo me atacava, lânguido e feroz: que sentido tinha criar e não gozar daquela vida? Eu assistia enquanto ele criava novas cores, e nascia em mim um desespero inconsolável. Impotente diante dele, pensava que, se nada se conserva, melhor é destruir.

Lentamente, rastejou em meu coração uma cobra traiçoeira, e o Criador que até então eu acreditei amar transformou-se em um tirano insensível aos sentimentos de piedade que minhas criaturas inspiravam. Eu fugia de seus abraços e não lhe concedia mais nada, aprofundando-me naquela amarga solidão que acolhe as almas mortas. Ele me olhava como se não me visse, e agora sei que sofria; talvez se sentisse preso a escolhas passadas, àquela dúvida atroz que logo me matou. Agora compreendo que ele sofria, sem saber escolher entre a mulher e as cores.

Chegou outro verão sem que nada mudasse, mas um dia ele não pintou e me encontrou no bosque: parecia consternado com algo a que não conseguia se opor, e muito cansado. Recuperou uma ternura, e nos amamos como nunca antes, pondo de lado complexos e inibições, felizes por sermos simplesmente nós mesmos. Ao fim, ele pareceu aliviado, como se finalmente tivesse compreendido o que precisava fazer. Voltamos, e ele retomou as cores, mas agora com um novo tema: eu. Permanecia imóvel por horas, olhando suas mãos ágeis sobre a tela, velozes e hábeis entre os pincéis, como se não tivessem outra fonte de sustento. O dia passou, e ele ainda estava encurvado sobre o quadro: a mulher retratada sorria, eternamente feliz em sua eterna juventude. Ao vê-la, eu não era mais eu mesma. Atrás dela, uma porta entreaberta me convidava a entrar, e eu me perguntei o que podia haver de tão secreto atrás dela que não se pudesse ver. De novo, aquela miserável tristeza me tomou, e eu não pude escapar; e da tristeza o langor, e depois loucura. Eu tinha mesmo me perdido, sem poder mais me encontrar? E quem tinha me comprado desta vez? Minha alma estava no quadro, e eu não podia protegê-la dos olhares alheios. Ele se levantou e me beijou longamente: será que sabia que eu tinha ido embora?

Naquela noite, não consegui dormir. Meus sonhos eram estranhos chamados de mundos perdidos no tempo. A porta ainda aberta mostrava um negro abismo de sombras e, no fundo, as cores. Com um salto, entrei e não pude mais sair: como a natureza prisioneira, permaneci esculpida na tela, e estava morta.

Desde aquele dia, ele não pintou outros quadros nem os vendeu, porque não sabe onde se escondeu minha alma, e desde então as árvores são cinza, e os rostos dos Anjos desapareceram como fumaça. Ele não sabe reconhecer a luz da noite e não sabe distinguir o fogo da água. E eu já não posso mais lhe dizer, porque estou atrás da porta, onde ele não poderá jamais me ver. Agora eu choro, sentindo-me desgraçada em minha humana fraqueza.

Tudo acabou, e não tenho mais voz para confessar-lhe que fui eu quem roubou suas cores.

A Música do Diabo

Vermelho

Diziam que aquela música foi o diabo quem compôs.

Boatos, palhaçadas, superstições? Mas ele a havia tocado muitas vezes, aquela música, e nunca tinha visto o diabo. E certamente o imaginava com aqueles chifres pontiagudos, o ar arrogante e roupas negras, como geralmente aparece, e então mete medo porque se sente aquela respiração quente no pescoço. Mas medo ele não tinha, então, aquela música parecia elevá-lo até onde o diabo, como se diz, não deveria estar. E cada vez lhe vinha no coração uma paz profunda, como nenhuma coisa terrena tem o poder de trazer. Era aquele amor pelo universo que palpitava em seu peito quando tocava, estimulando-o a continuar tocando; aquele estranho apagar dos sentidos. E então se sentia bom; aliás, ansioso para fazer o bem, mesmo que no fundo a bondade o irritasse tanto quanto o mal, e sempre acabava se fechando em si mesmo, sem fazer nada com aqueles sentimentos.

Era assim todos os dias: satisfeito consigo mesmo e depois descontente, querendo concentrar-se naquelas notas e cansado delas. Então vinha aquele estranho nojo das pessoas e de si mesmo, depois de ter tocado, que não compreendia, mas que não podia deixar de desejar. No fim, acostumou-se também a isso e não prestou mais atenção, pensando nesse nojo como uma pequena taxa a pagar para gozar de um dom precioso.

- O diabo? Não existe!

Dizia, usando como prova sua própria felicidade.

- Nunca roubei nada, nem fiz mal a ninguém, e sou feliz. Então o diabo não leva mais à perdição os mortais que gozam de sua companhia e de suas artes? Ora, se é assim, que seja bem-vindo o demônio!

E acariciava o queixo de sua jovem mulher de ventre grávido e pesado, sinal de que a criança estava saudável e crescia bem, um dos muitos sinais da bênção divina. Mas a mulher morreu na primavera enquanto dava à luz o filho. Mas dizer isso não é nem exato, porque a menina permaneceu presa no ventre da mãe morta até que um desconcertante lamento obrigou alguém a arrancá-la com uma cesárea improvisada. Tinha os olhos abertos e estava viva. Então todos pensaram que havia algo de maléfico nisso e que os presságios eram negativos. E quando finalmente se descobriu que aquela estranha criatura não falava, mesmo podendo, e que se limitava a observar o mundo com olhos distantes e cheios de raiva, todos os deixaram sós, e pai e filha viveram na solidão durante todos os anos de suas vidas.

Por fim, desapareceram, como se engolidos pelo nada, e todos disseram que foi o demônio quem pediu o pagamento de suas almas. Mas eu não sei como foi, porque fui o único a imiscuir-me na desgraça, levado por um sentimento de piedade por aquela pobre criatura que crescia no nada e por quem eu não podia fazer nada além de levar um pouco de comida. O que aconteceu me apavora ainda hoje, mas já sou velho, e não me é permitido temer nada além da morte. Então, meus amigos, escutem meu pobre discurso e depois o esqueçam. Já se falou o suficiente sobre isso.

Ele, portanto, continuava a tocar aquela música e aprofundando dia após dia no esquecimento. Tocando-a encontrava paz, fingindo não ser mais ele mesmo e fugindo para longe daquela realidade sem esperança. Nada o interessava além daquela música, e quando compreendeu que não podia mais viver sem ela, mesmo a odiando, começou a odiar a si mesmo porque a odiava. Não conseguia mais fazer nada: muito menos olhar aquela filha que derretia como uma vela, mesmo estando saudável, e que não dizia nem uma palavra.

- Maldita música! - praguejava a si mesmo.

E todo dia se prometia mais uma vez que não a tocaria mais, sabendo que não hesitaria nem um momento para colocar a mão nos instrumentos e fazê-lo. E sempre que aquelas notas subiam ao ar em um encanto mágico sobre seu corpo, desenhavam-se as sombras do esgotamento, aquela mancha escura que ficava cada dia mais nítida, até que explodiu com seu aspecto horrendo e ele não pôde mais não a ver. Aquela pata peluda que lhe nascera no peito era o sinal do diabo, aquele demônio que nunca tinha temido e que ainda não temia, mas que era cheio de horrores e enganos. Não havia escapatória: aquela música era o pacto de sangue que lhe havia sugado a alma e que havia presenteado como uma dádiva ao obscuro Senhor. Ele o tinha tocado e o mantinha entre as mãos, nutrindo-se de sua soberba e falta de fé. E o contágio passava de homem a homem através das notas daquela música que atiça os sentidos para o pecado que não se pode cometer, mas que, no íntimo, exatamente por isso já se comete. Uma peste silenciosa que cada criatura carrega a uma outra, repetindo o ciclo rumo ao infinito. Então ele se perguntou quantos massacres tinha cometido enquanto trazia ao mundo aquela música. Quantas outras manchas esperavam para explodir, quantos pecados pairavam no ar esperando ser apanhados. Tinha sido cego, mas agora via e compreendeu que aquela música ele precisava destruir logo, pois, se havia ainda uma possibilidade de salvação que impedisse os homens de seguirem o caminho que ele seguiu, aquilo dependia só dele. Levantou os braços para pegar a partitura, mas não conseguiu. Aquela música ainda falava com ele, ainda o encantava, como um jogo simples contra a vontade do homem vencido. Compreendeu em um momento que não queria mesmo destruí-la, mas sim tocá-la, uma vez que não havia tentação maior para o ser humano do que levar à perdição o próprio irmão.

- Você precisa queimá-la - sussurrou naquele momento uma voz atrás dele.

Era aquela filha muda que agora falava e estava parada bem à sua frente, pálida e com o rosto cheio de sofrimento, tremendo toda.

- Você precisa queimá-la - repetiu, descobrindo um dos seios.

A marca também tomava forma nela.

Aquela pata que tinha aparecido no peito dela havia devorado e perfurado tudo, furando até seu coração.

- Olha o que sobrou de mim. Deves queimar aquela música e deves me queimar também.

Então ele compreendeu que não havia mais esperança ou tempo: empilharam à beira do mar as poucas coisas que tinham e fizeram uma grande fogueira. Ele atirou nela o corpo de sua filha e, por fim, aquela música. E esperou em silêncio que o fogo extinguisse completamente, observando os últimos pedaços de sua vida indo embora com ele.

E, quando tudo acabou, sentiu-se velho e cansado: não porque tinha perdido a única filha, mas porque não podia mais tocar sua música. E quando esse pensamento ficou claro e nítido em sua mente, a mancha no peito começou a queimá-lo e a sufocá-lo, até que seu corpo também foi consumido e a carne devorada.

Então, voltou a seu quarto e se matou.

Loucuras

Laranja

Vi-a e fiquei logo impressionado. Algo nela me atraía e me rejeitava ao mesmo tempo, algo de infinitamente doce e secretamente triste em uma boca de mulher e um sorriso de menina, quase como se estivessem congregados nela uma inocência mágica e uma perversão lânguida. Quanto mais a olhava, mais me convencia que carregava em si uma natureza dúplice e, por consequência, uma beleza dúplice. E de fato me parecia bela, de uma elegância rara, com uma tímida roseira crescendo entre espinheiros selvagens. Foi assim, de instinto, que a segui: caminhava leve sem se virar, rápida e segura sobre longas pernas de pantera. Mas bastava olhar por um momento o seu perfil puro para descobrir a incerteza infantil que me tinha tomado e que então, mais do que nunca, parecia soar mal sobre seu corpo perfeito. Como em um sonho, ainda revejo seus castanhos cabelos soltos sobre as costas que pareciam tremer, o nariz pequenininho e arrebitado, a dobrinha amarga e macia de sua boca. Enquanto a seguia, imaginava até o som acre de sua voz, que devia ser sutil como seus quadris e harmoniosa como o tenro delinear de suas coxas. E eu sentia como se a conhecesse desde sempre enquanto me perguntava o que fazia ali, sozinho naquela longa estrada, apenas perseguindo um perfume de mulher.

Esses pensamentos acompanhavam o longo caminho que parecia não ter fim. Mas nada tinha fim naquele dia: nem o tagarelar suave das cotovias, nem o calor das colinas secas, e muito menos o suor que gotejava inexorável e lento da minha testa. Mas eu continuava caminhando, impulsionado pelo desejo desesperado que ela finalmente se virasse e, por um único momento, voltasse a mim seu olhar. De repente, quase irritada pelo barulho dos meus passos, ela se virou: captei um olhar sanguinário e feições cortantes como de uma fuinha. Feroz e sanguinária, então! Mas seu lábio tremeu de medo e eu ensaiei a coragem de quem se sente o mais forte. Olhei-a de volta longamente, esfomeado e desafiador, despejando pelos olhos os pensamentos proibidos silenciados por tempo demais. Mas não avancei nem um passo, preso pelo inconsciente temor de que aquela fosse apenas a visão de um momento, uma miragem perseguida por uma vida que poderia sumir em razão de uma simples imprudência. Eu senti que tinha uma necessidade extrema de afundar nela, de provar o calor de sua pele e a doçura de sua boca. Tive vontade de feri-la, de segurar aqueles quadris sutis e esfacelá-los entre os dedos, de pôr meus dedos sobre seus seios e depois arrancá-los, para esmagar e destruir algo precioso e frágil demais para não sentir raiva e me partir o coração. Ela estava ali, imóvel, e não fugia. E por que deveria? Desconhecidos um do outro e fixos em um pensamento, nenhum de nós dois se movia, e ficamos nos olhando como estudantes inquietos à espera do sinal que não chegava nunca. Por fim, ela se mexeu e eu segui atrás. Eu talvez fosse cúmplice de um misterioso subentendido oculto em seus olhos. Desorientado e perdido, segui o leve ritmo de suas pulsações, o prazer que escorria de sua pele e a obscura vontade de meus sensos.

Retomamos então aquele eterno vagar entre campos e colinas, e o céu parecia o mar, e cada odor prometia tempestade. Acompanhava-me um presságio de morte que de repente envolveu minha alma e não me abandonava mais. E eu, que nunca havia amado o calor do meu corpo, o senti com uma veemência macabra, como se tivesse despertado por vingança do longo esquecimento a que eu o havia condenado. Eu, que nunca havia amado uma mulher, agora me rebaixaria a pedir, me jogaria por impulso ao chão diante daqueles lindos quadris a mendigar uma hora de piedosas e amorosas carícias. Mas eu fui aquele homem que teve medo de amar e, por isso, se confinou para sempre nas certezas de um destino irrevogável, em um trabalho uniformizado, negando a si mesmo o calor do lar por pura vileza? Eram meus todos aqueles pesados anos passados em que eu me havia esquecido de ser menino e, por isso, abominava a ideia de um toque humano no rosto e do sorriso brilhante de um recém-nascido? O que eu tinha feito da minha pobre vida se não um vestido apertado demais em que eu mal encontrava lugar sozinho?

Cuspido desses pensamentos, me de conta que tínhamos chegado nos arredores de uma casa, e que a mulher estava perdida. Olhou-me, e eu fiquei do lado de fora, na espera inútil de um convite que nunca chegou. Parado diante da porta, não aconteceu nada naquele dia, nem nos seguintes, e eu fiquei em pé, respirando o ar poeirento dos campos até quando o sol ficou incandescente e o pó me queimou os pés e um forte vento me obrigou a voltar.

Desde aquele dia, vivi o terror de mim mesmo, segurei a inutilidade da minha vida vazia e constatei com amargura o colapso de minhas ilusões. De repente, senti nojo da minha sutil pele de velho. E compreendi finalmente que nunca amei, que escolhi com feroz obstinação percorrer sozinho essa passagem pela terra, decidido a dar valor àquilo que valor não tem, exceto àquele imaginário e inconsistente da vaidade dos homens. Seguindo aquela mulher, fui eu mesmo por uma hora: agora voltei a minha vida, a minha estrada morro abaixo que me levará ao previsível fim.

Sei que nunca serei feliz, mas talvez consiga convencer-me de que não cometi erros que mereçam censura, nem fiz péssimas escolhas a que preciso renunciar. Estenderei um véu sobre minha alma, como fazem todos, e percorrerei a linha que marca o tempo justificando a cada minuto minhas terríveis ações. O esquecimento é tudo o que desejo.

Mas agora sei que caminho em vão, sem esperança e sem amor.


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